Autor: Ismalia de Sousa
Enfermeira especialista em AVC e AIT no Imperial College Healthcare NHS Trust, Londres, Reino Unido.
Email: ismalia.desousa@imperial.nhs.uk ou ismalia_erica@yahoo.com
O Acidente Vascular Cerebral (AVC) define-se como o conjunto de sinais clínicos de distúrbio focal ou global da função cerebral que se desenvolve rapidamente e dura mais de 24 horas ou até à morte, sem uma causa aparente que não a causa vascular (World Health Organisation (WHO), 1978). De acordo com Townsend et al. (2012), no Reino Unido o AVC representa a quarta principal causa de morte. Em Portugal, o AVC é a segunda causa de morte (Monteiro 2011).
A incidência do AVC aumenta com a idade (Scarborough et al. 2009). Na atualidade o envelhecimento demográfico é, cada vez mais, um fenómeno visível nas sociedades contemporâneas. A OMS estima que com o aumento da população mundial com mais de 60 anos de 11% para 22% até 2050 (WHO 2014a), o envelhecimento demográfico poderá contribuir para uma problemática eminente pelo aumento do número de pessoas com um AVC (Mendis 2013, NICE 2013). A WHO (2014b) estima ainda que o AVC é a terceira principal causa de desabilidade.
Sinais e sintomas do AVC dependem do local em que ocorrem no cérebro. No entanto, podem incluir um ou mais dos seguintes: paralisia facial, hemiparesia, alteração da sensibilidade, alterações da fala como afasia ou disartria, disfunção visuo-espacial, perda da visão, desequilíbrio, náusea e vómito (Woodward e Mestecky 2011).
O desenvolvimento da Tomografia Axial Computorizada e da Ressonância Magnética Nuclear nos anos 60 revolucionou a medicina e a visão do AVC (Kelly 2011). Ambos disponibilizaram a definição do AVC dependendo do tipo: isquémico ou hemorrágico. Em 1987, a autorização da reperfusão por via endovenosa com rt-PA (recombinant tissue plasminogem activator) da Isquemia do miocárdio iniciou uma nova era e foi dado maior foco à fase aguda do tratamento do AVC. O agente trombolitico dissolve o coágulo através da conversão do plasminogénio em plasmina. Esta enzima degrada a fibrina, um dos componentes de formação do coágulo. Em 1995, a utilização de rt-PA para o tratamento do AVC isquémico agudo até 3 horas depois do inicio dos sintomas demonstrou uma melhoria do estado dos doentes 3 meses após o AVC (The National Institute of Neurological Disorders and Stroke rt-PA Stroke Study Group 1995). O tratamento trombolitico foi considerado uma emergência médica. Campanhas públicas (como o FAST – Face, Speech, Arm and Time – no Reino Unido) e profissionais foram criadas para alertar para a sua importância. Mais recentemente, estudos envolvendo extração mecânica do coágulo mostraram melhor eficácia no tratamento agudo do doente com AVC em comparação com o tratamento trombolítico (Saver et al. 2012, Fransen et al. 2014, Campbell et al. 2015, Jovin et al. 2015).
Fatores de risco do AVC incluem a Hipertensão arterial, a Diabetes, a Fibrilhação auricular, o alcoolismo, o tabagismo, obesidade e a dislipidemia. A adoção de estilos de vida mais ou menos saudáveis contribui para o risco individual de desenvolver um AVC. Para além disso, fatores de risco não controláveis como a idade, o sexo e a origem genética ou os antecedentes familiares, também podem estar na origem do AVC.
O AVC em Londres
Em 2008, devido a importância reconhecida na eficácia do tratamento trombolitico, foram criados serviços especializados em cuidados ao doente com AVC com foco na avaliação, diagnostico, tratamento, prevenção e reabilitação inicial dos doentes com AVC. Em simultâneo, profissionais de saúde especializados, incluindo enfermeiros foram recrutados (Department of Health 2007). A par com a reforma nos cuidados ao doente com AVC, um novo paradigma surgia em Londres: a transição dos cuidados dos doentes na comunidade ao invés de no hospital. Clínicas de Acidente Isquémico Cerebral foram criadas para permitir uma avaliação rápida e acesso especializado que prevenisse a o internamento hospitalar. Serviços de agudos de AVC e não Agudos foram criados em Londres. Um total de 8 serviços agudos permitiram que doentes com AVC fossem avaliados e recebessem tratamento trombolítico nas primeiras 4.5 horas depois do inicio dos sintomas, sendo diretamente admitidos nestes serviços por um período de tempo ate 72 horas. Quando a alta para o domicílio não fosse possível, os doentes seriam transferidos para os serviços de não agudos de AVC, com foco na reabilitação e com uma supervisão médica. Após um tempo de internamento de aproximadamente 2 semanas nos serviços de não agudos, os sobreviventes de AVC podem ter alta para o seu domicilio podendo seguir a reabilitação em casa com equipas domiciliarias, caso precisem. No entanto, outros doentes de AVC que necessitam de maior número de horas de reabilitação e cujas sequelas do AVC são mais debilitantes afetando as atividades de vida diária no domicilio, são transferidos para unidades de reabilitação.
O enfermeiro especialista em AVC em Londres
O papel do enfermeiro especialista em AVC em Londres varia dependendo do grupo hospital em que este se insere. A descrição do papel do enfermeiro especialista é baseada no papel do autor deste artigo. O enfermeiro especialista em AVC pressupõem uma educação de enfermagem ao nível de mestrado, com um conhecimento avançado das neurociências, mais especificamente, do AVC.
São várias as funções do enfermeiro especialista em AVC, um papel que assenta na pratica clínica e que tem várias dimensões. O enfermeiro especialista em AVC participa diariamente na Via Verde do hospital, fazendo parte da equipa de emergência do AVC para o tratamento trombolítico e o tratamento de extração mecânica do coágulo em doentes em situações agudas. A equipa do serviço de ambulância de Londres alerta as urgências do hospital com uma unidade de agudos de AVC para os doentes com uma suspeita de AVC que chegarão ao serviço de urgência e, posteriormente, o serviço de urgência alerta a equipa de emergência do AVC. Quando o doente com suspeita de AVC dá entrada no serviço de urgência, apenas a equipa especializada em AVC avalia o doente. É da responsabilidade do enfermeiro especialista em AVC assegurar a avaliação das funções vitais do doente, o suporte avançado (ABCDE) a monitorização cardíaca contínua, assim como a introdução do acesso periférico venoso e a colheita de sangue para análise. O Glasgow Coma Scale, a avaliação da reatividade, simetria e tamanho pupilar e a avaliação da função motora são da responsabilidade do enfermeiro. Para além disso, é o enfermeiro especialista que monitoriza o tempo de avaliação no contexto do serviço de urgência (máximo de 10 minutos). O National Institute Health Stroke Scale (NIHSS) test é conduzido pelo médico, embora o enfermeiro especialista tenha o treino adequado para o fazer e o possa fazer caso seja necessário. O diagnóstico diferencial é possível nos casos agudos de AVC e o enfermeiro especialista está também envolvido nesta avaliação, tendo os conhecimentos necessários para lidar com situações de infecção generalizada ou mesmo crises epilépticas. Os conhecimentos avançados de AVC permitem ao enfermeiro compreender o percurso que o doente terá e que intervenções de emergência poderão ser prestadas. O enfermeiro especialista participa de forma ativa nas decisões clínicas e no tratamento dos doentes com AVC em situações de emergência aguda, percebendo também quando são a tomografia computorizada e/ou ressonância magnética com ou sem contraste necessárias.
A decisão de tratamento trombolitico é feita pelo médico especialista em AVC ou o neurologista responsável e cabe ao enfermeiro a preparação do medicamento e a administração endovenosa, que tem lugar junto ao serviço de radiologia. O tempo ideal entre a entrada no serviço de urgência e o tratamento trombolitico (tempo porta-agulha) é de menos de 30 minutos e, em casos de extração mecânica do coagulo, menos de 1 hora. Caso a administração endovenosa seja dada, o enfermeiro facilita o internamento do doente com AVC para o serviço de agudos, assegurando a monitorização dos sinais vitais segundo o protocolo e possíveis complicações após tratamento durante cerca de 20 minutos até à entrada na unidade. Doentes que receberam tratamento trombolitico são sempre internados nas unidades de agudos de AVC e nunca retornam ao serviço de urgência. É ainda função do enfermeiro especialista a avaliação da capacidade de deglutição do doente com AVC. Tanto o doente como a família são informados pela equipa de urgência e os cuidados são transmitidos.
Outra das dimensões do papel do enfermeiro especialista em AVC diz respeito a prevenção secundária do AVC e educação dos doentes com AVC, os seus familiares e cuidadores. Health coaching e estratégias de entrevista motivacional são utilizadas. A educação transmitida pelo enfermeiro especialista em AVC tem como foco a compreensão, por parte do doente, do conceito de AVC e dos sintomas associados, os fatores de risco responsáveis e o modo como estes fatores de risco devem ser tratados após a alta hospitalar. A avaliação dos resultados de análises sanguíneas pertinentes na educação é também feita, assim como a revisão clínica do doente em relação á tensão arterial e medicação prescrita ou que é necessário prescrever. É também dada importância a novos diagnósticos feitos desde o internamento, a intervenções cirúrgicas durante o internamento hospital (por exemplo, a endarterectomia carotídea) e a adesão à medicação. Possíveis complicações como a disfagia, a afasia, a dificuldade na memória, são discutidas com os familiares e cuidadores. O enfermeiro especialista em AVC é ainda responsável por assegurar o contacto mensal de apoio ao AVC que ocorre no hospital após a alta.
Na clínica do Acidente Isquémico Transitório (AIT), o enfermeiro especialista é responsável pela triagem dos doentes referidos para esta clínica, da avaliação destes doentes, diagnóstico e tratamento em conjunto com um médico responsável.
A educação dos enfermeiros nas unidades de AVC (de agudos e não agudos) é também parte do papel do enfermeiro especialista em AVC. A educação dos enfermeiros é feita não só através de oportunidades de ensino que emergem durante a prática clínica, mas também através da apresentação de casos clínicos por parte dos restantes enfermeiros e da supervisão e apoio dos mesmos durante cursos universitários. É ainda papel do enfermeiro especialista a transmissão de cuidados de enfermagem que assentem na evidência prática.
O enfermeiro especialista em AVC está também envolvido na investigação e no desenvolvimento de projetos locais que assegurem a excelência dos cuidados de enfermagem prestados.
A auditoria dos doentes avaliados na clínica do AIT e dos doentes que receberam tratamento trombolitico é também assegurada pelo enfermeiro especialista.
O enfermeiro especialista em AVC na Enfermagem Portuguesa
Perante as dificuldades na enfermagem e nos cuidados de enfermagem em Portugal, será importante perceber se o papel do enfermeiro especialista em AVC semelhante em Londres poderá ser aplicado no contexto da enfermagem em Portugal. Em primeiro lugar, a especialização do enfermeiro em AVC não existe, existindo apenas um conceito mais abrangente de enfermagem de reabilitação, cujo objetivo e prevenir, recuperar e habilitar de novo a pessoa com doença súbita ou crónica.
A situação de restrição orçamental e a contenção dos gastos públicos em Portugal afeta a prestação de cuidados e diminui a qualidade dos mesmos. Para além disso, o AVC é uma questão de saúde pública e acarreta elevados custos económicos nos cuidados de saúde e nos recursos humanos necessários para fazer face a estes cuidados. O investimento no desenvolvimento de mais unidades de agudos de AVC, na prevenção e nos cuidados na fase aguda, assim como na reabilitação no domicilio ou em unidades de reabilitação e necessária. A par, será necessário o recrutamento de enfermeiros especialistas e o desenvolvimento daqueles com especial interesse na área.
O enfermeiro especialista, como profissional com prática avançada e independente nos cuidados de enfermagem, autónomo na avaliação, diagnóstico e tratamento dos doentes com AVC e uma mais-valia no contexto da enfermagem e na prestação de cuidados de saúde em Portugal. A possibilidade de recrutamento de enfermeiros, o desenvolvimento do conhecimento técnico e cientifico destes em enfermagem de reabilitação dos doentes com AVC pelo enfermeiro especialista em AVC é imprescindível na redução do tempo de internamento, sequelas e aumento das capacidades de auto cuidado do doente.
A enfermagem de especialização em AVC e a participação do enfermeiro especialista na via verde, reduz o tempo de cuidados do enfermeiro de urgência ao doente com AVC. Para além disso, o papel do enfermeiro especialista em AVC numa clínica de AIT contribui para a redução do número de internamentos hospitalares. O acesso e qualidade dos cuidados de saúde e as estruturas de gestão são recomendações presentes no Plano Nacional de Saúde 2011-2016 que potenciam ganhos em saúde.
Referencias
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