Autora: Anabela Salgado Serra
Enf.ª Chefe e Especialista em Enfermagem de Saúde Infantil e Pediátrica
Mestre em Ciências Empresariais, Gestão de Recursos Humanos | Pós-graduada em Gestão de Hospitais e Serviços de Saúde
E-mail: asalse44@gmail.com
Falar sobre Interdisciplinaridade1, no âmbito da saúde, continua a ser um desafio pois, se pensarmos que já se fala neste tema há dezenas de anos, a sua aplicabilidade ainda é praticamente inexistente. Qualquer profissional de saúde que participe em eventos recentes, que leia notícias ou legislação, o que vai encontrar ou ouvir falar é ainda sobre equipas multidisciplinares.
Em 2003, VilelaIe Mendes,2citando Japiassu(1976)referia, de uma forma bem original, que “o fenômeno da interdisciplinarização representa mais um “sintoma da situação patológica em que se encontra, hoje, o saber” do que um real progresso do conhecimento. O exagero das especializações conduz a uma situação patológica em que uma “inteligência esfacelada” produz um “saber em migalhas”. Nesse contexto, o esforço de integração da interdisciplinaridade apresenta-se como “o remédio mais adequado à cancerização ou à patologia geral do saber”.
Referem, ainda, que a “Interdisciplinaridade também é uma questão de atitude. “É uma relação de reciprocidade, de mutualidade, que pressupõe uma atitude diferente a ser assumida diante do problema do conhecimento, ou seja, é a substituição de uma concepção fragmentária para unitária do ser humano”. Está também associada ao desenvolvimento de certos traços da personalidade, tais como: flexibilidade, confiança, paciência, intuição, capacidade de adaptação, sensibilidade em relação às demais pessoas, aceitação de riscos, aprender a agir na diversidade, aceitar novos papéis.”.
Também Schereret al (2012)3,concluiu que “o trabalho multiprofissional na perspectiva interdisciplinar apareceu como possibilidade concreta no plano intelectual, mas na prática era orientado predominantemente pelo modelo biomédico hegemônico”, “(…) que os profissionais vivenciam adificuldade de compartilhar saberes e de transitar entre o multi e o inter” e ainda “que a interdisciplinaridade requer uso integrado de conhecimentos na prática multiprofissional, invasão das fronteiras disciplinares, desenvolvimento de competências para lidar com os desafios do meio e atitude individual como componente fundamental para o agir profissional.”
Poder-se-á então dizer que é natural e que seria de esperar esta diminuta interiorização e aplicação do pensamento interdisciplinar, pois, como verificou Bispoet al (2014)4, nas conclusões do seu estudo, “os dados apontaram para o desconhecimento da interdisciplinaridade por parte dos profissionais preceptores (…), tanto na teoria quanto na prática interdisciplinar. Este desconhecimento foi percebido pelo fato de os sujeitos não terem tido uma formação acadêmica voltada para a interdisciplinaridade, como, também, durante as vivências no campo profissional, não tiveram nenhum tipo de capacitação sobre a prática e a teoria interdisciplinar”.
Isto vai ao encontro do que Delgado5salientava, já em 2000, quando se referia aos vários profissionais da saúde, dizendo que “são muitos os contributos que ao longo da nossa formação nos vão orientando para comportamentos eminentemente individualistas, auto-suficientes e profundamente competitivos. Sobra-nos muitas vezes em convencimento o que nos falta em humildade e espírito de colaboração”. Refere ainda que seria bom que “cada um de nós, no seu desempenho e na sua profissão, interiorize e aceite partilhar alguns desafios indispensáveis para que aqueles consensos sejam consequentes”.
Não existindo esta atitude, este pensamento interdisciplinar no ensino, os profissionais de saúde continuarão a ser formados para trabalhar em equipas multidisciplinares, onde, na maior parte das vezes, existe um desequilíbrio no reconhecimento dos saberes de cada profissão interveniente, não se conseguindo obter as melhores sinergias e consequentes resultados deste trabalho. E que fazer para mudar este estado da arte?
À semelhança da transformação do paradigma cartesiano para um paradigma holístico, as várias profissões e a própria política da Saúde também têm apresentado evolução no mesmo sentido. O que tem sido difícil é vê-los aplicados na prática.
O pensamento interdisciplinar está intimamente relacionado com o trabalho em equipa. Equipa, segundo Graça (1992), citada por Figueiredo (1997:19)6, significa “um pequeno grupo, baseado na cooperação, e em contacto regular, contacto esse que não é à distância, mas face a face, que está envolvido numa acção coordenada, e cujos membros contribuem de maneira empenhada competente e responsável para a realização de uma ou mais actividades concretas”.
Também este conceito tem vindo a evoluir lentamente, pois, como referem Guyonnet e Adam, Graça, e Kerouac et al (….), com a especialização e sobreposição que poderá existir dos papéis dos diferentes elementos da equipa, “pela linguagem muitas vezes hermética de cada disciplina, pelos seus valores e finalidades próprios e diferentes, pela competição que se impõe à complementaridade, pelo desconhecimento por parte dos profissionais da natureza das funções e do nível de competências uns dos outros, para não falar já da existência de arreigados estereótipos de uns em relação a outros, e da tentativa de domínio da equipa por determinados grupos profissionais” (Figueiredo, 1997:20), torna difícil o trabalho e resultado final não é o pretendido nem o melhor.
A saúde é um bem essencial, complexo, global, multicultural mas também específico e com particularidades únicas, pelo que tem de ser encarada de uma forma interdisciplinar. Só assim poderemos, todos em conjunto, complementarmente e em igualdade de importância, identificar problemas/diagnósticos, planear cuidados, executá-los e avaliá-los.
O caminho tem-se vindo a fazer, a evolução tem sido grande mas os comportamentos são das coisas mais difíceis de mudar, bem como a enorme resistência à mudança que existe em cada um de nós.
Por estes motivos teremos de começar, desde logo, a atuar no início. E qual é este início? A Escola. E como? Criando uma Escola/Universidade Superior da Saúde!
Todos os que queiram seguir esta área da Saúde, seja no campo da Enfermagem, da Medicina, da Fisiatria, do Diagnóstico e Terapêutica, do Auxiliar de Saúde, da Nutrição, do Social, do Psicológico e Espiritual e de todos os que sejam reconhecidos e integrados neste conceito lato e particular de Saúde, teriam de partilhar um ano comum, após o que optariam por uma vertente, onde, com certeza, iriam cruzar-se mais vezes com outras vertentes, tendo sempre por base o pensamento interdisciplinar e, quem sabe, no futuro, o transdisciplinar.
Só assim conseguiremos incutir nos profissionais de saúde que todos eles são importantes para uma Saúde que se pretende centrada no Cidadão e que não devem existir elos mais fracos, sob a pena de, caso pensem e ajam assim, colocar em causa todo o trabalho de uma equipa e dos ganhos em saúde para os cidadãos, que defendemos.
Documentos de referência:
- Serra, Anabela Salgado (2002), “Interdisciplinaridade, valores e autonomia(I parte) ”.“Revista Nursing”, Ano14, Nº169 Setembro, p. 22-25; Serra, Anabela Salgado (2002), “Interdisciplinaridade, valores e autonomia(II parte), “Revista Nursing”, Ano 14, Nº170, Setembro, p. 17-22.
- VilelaI, Elaine; Mendes, Iranilde (2003), “Interdisciplinaridade e saúde: estudo bibliográfico”, in Rev. Latino-Am. Enfermagem vol.11 no.4 Ribeirão Preto July/Aug. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692003000400016
- Scherer, Magda; Pires, Denise; Jean, Rémy (2012), “A construção da interdisciplinaridade no trabalho da Equipe de Saúde da Família”, estudo qualitativo realizado no Sul do Brasil, in https://www.scielosp.org/article/csc/2013.v18n11/3203-3212/.
- Tavares, Carlos; Tomaz, Jerzuí (2014), “Interdisciplinaridade no ensino em saúde: “O olhar do preceptor na Saúde da Família”, in http://www.scielo.br/pdf/icse/v18n49/1807-5762-icse-1807-576220130158.pdf
- DELGADO, Manuel (2000),“A interdisciplinaridade nas profissões de saúde: consensos, desafios e discrepâncias”, Revista da Ordem dos Enfermeiros, 0, 42-43.
- FIGUEIREDO, do Céu A. Barbieri de (1997), “Trabalho em equipa, o contributo dos enfermeiros”, Revista Sinais Vitais, 10, 19-22
Deixe uma resposta